E não apenas a minha — mas a de muitos. Talvez até a dos primeiros seres humanos que, há mais de 50 mil anos, pintaram em paredes de cavernas as suas experiências, temores e crenças. Antes mesmo de qualquer idioma formalizado, a imagem já comunicava. Já era linguagem. E isso, por si só, é profundamente comovente.
Não sabemos com exatidão se aqueles ancestrais falavam entre si com palavras articuladas como as nossas, mas sabemos que viam. Que sentiam. E que desenhavam o mundo com carvão e ocre. Imagens gravadas na rocha como se fossem cartas jamais endereçadas, mas que atravessaram os séculos para nos lembrar: a imagem é anterior à palavra.
Por sorte, compreendi isso razoavelmente cedo. Era ainda um jovem estudante de fotografia quando fui apresentado à obra de Francesca Woodman — em uma projeção no antigo fotoclube Luminous. Lembro exatamente do momento em que a vi seus autorretratos desfocados, sua presença ausente, seus corpos quase evaporando dentro de espaços decadentes. Eu pensei, em silêncio: "Que trabalho sufocante… ela não estava bem." Pouco depois, o palestrante confirmou o que meu corpo já sabia antes da razão: Francesca nos deixou muito jovem e suas imagens pareciam gritar por ajuda, e ainda ecoam com brutal honestidade o que tantas vezes não conseguimos nomear. A fotografia berra. A fotografia estremece. Ela se infiltra onde a palavra não alcança.
Vivemos imersos num oceano de imagens. Somos bombardeados por elas a cada instante, mas poucas realmente nos atravessam. Algumas, no entanto, têm o poder de abrir velhas feridas: imagens de guerras esquecidas, de amores perdidos, de lares desfeitos, da fome, da sede, da miséria... de uma sociedade ferida que insiste em posar para a lente fingindo saúde, amor e prosperidade. Porque há também aquelas imagens que mentem — imagens que dizem "olhe para mim", mas não dizem mais nada. São só verniz barato, só vitrine, só disfarce. Aquelas que servem para dizer “mereço” ou “está pago”, como se uma selfie num restaurante caro pudesse, de fato, preencher um vazio.
A imagem é língua viva. E como toda linguagem, nem todos são fluentes. Há quem saiba "falar imagem", há quem saiba "ouvi-la", e há quem simplesmente veja sem ver. Dominar essa língua exige mais do que técnica: exige sensibilidade, escuta, intuição. Exige entender que, na imagem, a tristeza apaga as cores e faz avançar as sombras. Que a luz alta e quente só retorna quando a alma volta a sorrir. A fotografia é mapa emocional, ainda que muitos a tratem como mera moldura de vaidade.
É preciso aprender a ler imagens. Não com os olhos, mas com o corpo inteiro. É preciso saber o que se quer dizer quando se aperta o disparador. Porque, no fim, quem fotografa também escreve — escreve com luz e sombra versos que a voz não foi capaz de pronunciar.
A imagem é a minha língua. E, se você parar para ouvir, talvez também seja a sua.