Outro dia, uma cliente me questionou: “Você ainda fotografa pessoas reais ou já está usando IA?”. A pergunta era direta, talvez até bem-intencionada, mas soou como uma daquelas frases que batem no fundo do estômago antes de fazer eco na cabeça. Porque mais do que perguntar sobre técnica, ela escancarava uma mudança de comportamento, de uma era. Um deslocamento sutil no que entendemos por imagem, autoria e presença — sutil como o ruidoso arrastar de um baú cheio e empoeirado as três da manhã em um apartamento.
Nos últimos meses, tenho acompanhado os avanços "impressionantes" da IA na criação de imagens. Retratos perfeitos de pessoas que nunca existiram, luzes milimetricamente simuladas, expressões renderizadas com precisão matemática. A princípio, tudo isso soa como mágica. Mas há algo desconcertante nesse milagre: a ausência de alma, sim, aquela velha alma que nós fotógrafos roubamos aqui e ali.
A fotografia comercial, que sempre dialogou com desejo, estética e narrativa, está sendo convidada a rever seus fundamentos. O que estamos vendendo, afinal? Um produto? Uma emoção? Ou apenas pixels bem organizados? Diante das ferramentas que prometem entregar “resultados” instantâneos, o papel do fotógrafo parece ameaçado — mas talvez o verbo esteja mal conjugado. Ele não está ameaçado. Está em transição, ou elaboração, ou agonia, ou sublimação. Ainda difícil de entender ou descrever.
O que a inteligência artificial ainda não entendeu — e talvez nunca entenda — é que uma imagem não é feita apenas com luz e lente, na perfeição neural ou algorítmica . Ela é feita com escuta. Com presença. Com repertório. E sobretudo com aquele silêncio antes do clique, quando tudo fica suspenso por um segundo e o mundo se revela sem que a gente peça.
Fotografar pessoas, produtos ou espaços ainda será necessário. Mas o que passará a ser essencial é a narrativa por trás disso. A curadoria do olhar. O gesto ético de não substituir histórias reais por cópias perfeitas — e sem memória. Em um futuro onde tudo pode ser simulado, a fotografia que sobreviverá será a que ainda emociona. A que ainda respira.
Porque no fim das contas, não estamos em disputa com a IA. Estamos em disputa com o esquecimento.