A fotografia, desde seu nascimento, sempre esteve no centro da tensão entre a realidade e o imaginário. Quando Niépce registrou sua "Vista da Janela em Le Gras", mal poderia pensar que, dois séculos depois, a produção de uma imagem se estenderia para domínios antes inimagináveis, operados por algoritmos e redes neurais. Hoje, a inteligência artificial emerge como protagonista na discussão do mundo fotográfico, e desafia as noções tradicionais de autoria, realidade e ética.
Mas, esquecemos que o uso da IA na fotografia não se limita à criação de imagens sintéticas a partir de prompts bem ou mal escritos — aquelas imagens geradas inteiramente por máquinas, sem a intermediação de uma câmera ou de uma cena real. Ele se estende também à revelação, manipulação básica e totalmente necessária, restauração e até curadoria de imagens. Ferramentas de edição baseadas em IA prometem eliminar imperfeições, ampliar resoluções sem perda de qualidade e até “reviver” rostos desaparecidos do passado, além de fazer tudo isso em lote, permitindo maior tempo livre para o autor trabalhar em novas imagens. Mesmo dentro do jornalismo, algoritmos já começam a selecionar, legendar e distribuir fotografias reais focando padrões de engajamento e relevância em mídias sociais.
Mas o que está em jogo não é apenas a estética ou a técnica. É a própria relação da fotografia com a verdade. Há os que discutem a fotografia como um testemunho — "um fragmento do real" de Roland Barthes, mas há também os que consideram que toda imagem é uma invenção da realidade, pois a partir de uma cena real, o fotógrafo interfere na escolha da lente, do ângulo, na mensagem captada e depois, na cor, contraste, corte e todo tipo de correção que se possa fazer em um software de revelação de imagem. E no meio desse caminho, o advento da IA embaralha os limites entre documento da realidade e ficção. Se toda imagem pode ser fabricada, até que ponto podemos acreditar no que vemos? Isso vale para a fotografia analógica, digital ou criada por IA, e talvez possa chamar essa de “fotografia neural”.
Há quem celebre essa nova era - Artistas e fotógrafos experimentais enxergam na IA um campo fértil de criação, uma extensão da imaginação. De fato, a inteligência artificial amplia as possibilidades da imagem, permitindo visões oníricas, universos alternativos, realidades nunca fotografadas. Para esses criadores, a IA não substitui a câmera, mas transforma o ato fotográfico em um diálogo com a máquina, uma colaboração entre humano e algoritmo.
Por outro lado, há uma preocupação legítima, principalmente no campo do fotojornalismo. A fotografia jornalística carrega um contrato de veracidade com o público. Ao publicar uma imagem, o fotojornalista afirma: "Eu estive lá e isso aconteceu." Se a IA pode simular cenas, recompor elementos ou mesmo alterar detalhes sutis sem deixar rastros visíveis, como manter a integridade da notícia? É sintomático que agências de notícias e prêmios de fotografia já comecem a criar políticas para restringir o uso de inteligência artificial, especialmente em imagens documentais.
A ética no uso da IA na fotografia toca também na questão da autoria. Se uma imagem é gerada por um prompt textual em uma plataforma de inteligência artificial, quem é o autor? O programador? O usuário que escreveu o prompt? O próprio algoritmo?
A fotografia, antes ato de registro do olhar humano, corre o risco de se tornar um produto sem rosto, sem história, sem corpo e sem alma. E talvez essa seja uma das grandes inquietações do nosso tempo: a substituição da experiência vivida por uma experiência simulada, a perda do testemunho humano em favor da programação de um algoritmo. E aí nem precisamos falar de fotografia, mas podemos ampliar a experiência para o dia a dia.
E vivendo em uma fase de cancelamentos digitais, não podemos cair no moralismo simplista de demonizar a tecnologia e a IA, ao menos não enquanto robôs controlados por ela não nos escravizarem. A IA, como qualquer ferramenta, depende do uso que fazemos dela – vamos olhar para relação entre o Photoshop e a publicidade, por exemplo. Há usos éticos e criativos que podem auxiliar no tratamento de grandes volumes de imagem — como a restauração de imagens, arquivos históricos, tratamento em lote baseado em perfil de cada profissional entre outros. Mas há também o risco da manipulação da verdade, da desinformação amplificada, da erosão da confiança do leitor nas imagens. E nunca este assunto esteve tão em pauta; a fake News, que pode encontrar na IA uma fonte inesgotável de recursos de manipulação pública.
O limite, portanto, talvez não esteja apenas na ferramenta, mas no contexto, na intenção e na transparência. Como críticos, fotógrafos e espectadores, precisamos cultivar um olhar atento, capaz de questionar, investigar, desconfiar e checar toda fonte. Talvez o futuro da fotografia na era da inteligência artificial não dependa tanto da máquina, mas da nossa capacidade de discernimento, da educação visual que formamos para navegar nesse novo oceano de imagens. Mas por agora, quando falamos em educação visual, talvez seja mais fácil encontrar pessoas fluentes em latim do que em imagens.
A fotografia nunca foi neutra. Cada enquadramento, cada escolha de luz, cada corte já carrega uma interpretação do mundo. A IA apenas expõe e amplifica esse jogo de escolhas. Cabe a nós, como fotógrafos e audiência, decidir que tipo de imagens queremos produzir e ver - sobretudo, que tipo de realidade queremos construir com elas. O problema da IA é o uso que se faz dela.
No fim, talvez a fotografia, mesmo imersa em algoritmos da fotografia digital, do tratamento e da IA, continue sendo, como disse Susan Sontag, "uma forma de aprisionar o mundo". Mas cabe a nós decidir se queremos fotografar a verdade inventada ou a invenção manipulada.
(foto de capa, acima, de autoria de William Silveira, com câmera digital e sem uso de IA, mas questionando a realidade tanto quanto uma imagem gerada por IA)